quarta-feira, 28 de julho de 2010

A Formiga e a Cigarra.


Psicologia.

Revista Veja, 20 de Janeiro de 2010. Por Lya Luft.

"O trabalho enobrece" é uma dessas frases que a gente repete sem refletir no que significam, feito reza automatizada. Outra é " A quem DEUS ama, ele faz sofrer", que fala de uma divindade cruel e fria, que não merecia uma vela se quer. Sinto muito:nem sempre trabalhar nos torna mais nobres, nem sempre a dor nos deixa mais justos, e mais generosos. O tempo para a contemplação da arte e da natureza, ou curtição dos afetos, por exemplo, deve enobrecer bem mais. Ser feliz, viver com alguma harmonia, há de nos tornar melhores do que a desgraça. A ilusão de que o trabalho e o sofrimento nos aperfeiçoam é uma ideia que deve ser reavaliada e desmascarada.
O trabalho tem de ser o primeiro de nossos valores, nos ensinaram, colocando à nossa frente cartazes pintados que impedem que a gente enxergue além disso. Eu prefiro a velha dama esquecida num canto feito uma mala furada, que se chama ética. Uma palavra refinada para dizer o que está ao alcance de qualquer um de nós: decência. Prefiro ao mito do trabalho como a única salvação, e da dor como cursinho de aperfeiçoamento pessoal, a realidade possivél dos amores e dos valores que nos tornariam mais humanos. Para que se trabalhe com mais força e ímpeto e se viva com mais esperança.
O trabalho que da valor ao ser humano e algum sentido à vida pode, por outro lado, deformar e destruir. O desprezo pela alegria e pelo prazer espalha-se entre muitos de nossos conceitos, e nos sentimos culpados se não estamos em atividade, cultura do corre-corre e da competência pela competência, do poder pelo poder, por mais tolo que ele seja.
Assim como o sofrimento pode nos tornar amargos e até emocionalmente estéreis, o trabalho pode aviltar, humilhar, expor e solapar qualquer dignidade, roubar nosso tempo, sáude e possibilidade de crescimento. Na verdade, o que enobrece é a responsabilidade que os deveres, incluindo os de trabalho, trazem consigo. O que nos tornar mais bondosos e tolerantes, eventualmente, nasce do sofrimento suportado com dignidade, quem sabe com estoicismo. Mas um ser humano decente é resultado de muito maisque isso: de genética, da infancia, da sociedade em que esta inserido, da sorte ou do azar, e das escolhas pessoais ( essas a gente costuma esquecer: queixar-se é tão mais fácil ).
Quanto tempo o meu trabalho - se é que temos escolha, pois a maioria de nos da graças a DEUS se consegue trabalhar por um salário vil - me permite para lazer, ou o que eu de verdade quero, se é que paro para refletir sobre isso ? Quanto tempo me dou para viver ? Quanto sobra para meu crescimento pessoal, para tentar observar o mundo e descobrir meu lugar nele, por menor que seja, ou para entender minha cultura e minha gente, para amar minha família ?
E, se o luxo desse tempo existe, eu o emprego para ser, para viver, ou para correr atrás de mais um trabalho a fim de pagar dividas nem sempre necessárias ? Ou apenas não me sinto bem ficando parado sem atividade, tenho de me agitar sem vontade, rir sem alegria, gritar sem entusiasmo, correr na esteira alem do indispensável para me manter sadio, vagar no shopping quando não tenho a fazer ali quando já comprei todo o possível e muito mais do que preciso, no maior numero de prestações que me ofereceram ?
E, quando tenho momentos de alegria, curto isso ou me preocupo: algo deve estar errado ?
Servo de uma culpa generalizada, fabricamos caprichosamente cada elo do circulo infernal da nossa infelicidade e alienação. Estas frases feitas, das quais aqui citei só duas, podem parecer banais. Até rimos delas, quando alguém nos leva a refletir a respeito. Mas na verdade são instrumentos de dominação de mentes: sofra e não se queixe, não se poupe, não se de folga, mantenha-se trabalhando, seja humilde, seja pobre, sofrer é nosso destino, darás luz a dor com dor - e todo o resto da tola e desumana lavagem cerebral de muitos séculos, que a gente em geral nem questiona mais.

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